quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Na prática, a gramática era outra.

Antonio Gil Neto.

Não sei dizer com exatidão o porquê de me aventurar na profissão de professor. Fico mexendo nas gavetinhas da memória para ver se encontro uma prova, mas o máximo que encontro é uma pista, talvez bastante forte: o convívio com meus professores que sempre tinham uma espécie de “algo mais”: o modo como falavam das coisas. Não eram comuns como quem vivia em nossas casas. Eram como forasteiros, diferentes, à princípio. Depois, pessoas bem recebidas, bem vestidas, bem colocadas em toda situação. Talvez ficasse imaginando que queria ser como elas e viver num mundo que ainda não me pertencia, mas que vislumbrava admirado. Foi assim que entre o clássico, o científico e o curso normal, resolvi realizar este último que me daria o direito e a glória de me tornar professor. E lá fui com mais alguns colegas estudar em outra cidade um pouco maior e um tanto quanto distante. Íamos de ônibus, ainda chamado de jardineira. Os estudos e suas lições infinitas do Instituto de Educação “A. A. Martins” eram muito mais apertados do que os do ginásio. Os professores, bem mais exigentes. Parecia que a minha vida era simplesmente estudar. Às 11 horas da manhã, estávamos no ponto do ônibus e só retornávamos às 18:30 h. Ficava quase todo o tempo dos dias fora de casa. O que sobrava ainda era empregado com ou sem vontade nas tarefas. Lembro -me de que cada um dos professores, a seu estilo tão marcante e particular, tratava sua matéria como única e mais importante que todas. Não importava se tínhamos tarefa disso ou daquilo. O trabalho tinha de ser feito assim e assado, entregue e pronto! As provas eram das mais difíceis. Preparávamo-nos para elas como quem vai para uma batalha e pra valer. Quantas manhãs, feriados, domingos desperdiçamos nas casas da Rosa Feres ou da Lucia Pires armando-nos das munições. Nos últimos anos veio o estágio nas aulas de prática de ensino. Precisávamos ir mais cedo e por vezes tínhamos que dormir em casa de algum estranho. Uns, tinham parentes para incomodar. Outros, como eu, arranjava algum. Comíamos algum lanchinho magro guardado no fundo da bolsa que era desamassado e devorado na praça do jardim em compasso de espera para o segundo round do dia. Passados os três anos, o diploma. Como você dever ter percebido era muito bom aluno à luz do esperado. Tinha boas notas. Mas, não imaginava ser laureado com um prêmio que me sustentaria de alegria breve. O que me chegou foi um chamado solene e por escrito da Delegacia de Ensino: exerceria por quase um mês o trabalho de professor numa escola de uma outra cidade vizinha. O titular estava afastado por conta de rigor médico. Com grande medo e um fiapo de coragem fui fazer jus ao prêmio e dar conta daquela bela incumbência. Era uma classe de primeira série e só com meninos. Então isso existia? Lembro-me de que aquele prêmio foi muito pior do que todos os estágios juntos, os trabalhos longos e difíceis, as horas gastas em decorar tantas regras e tantas explicações de páginas e páginas. Sofri o pão mais duro que o pior demônio pudesse ter amassado e assado. Nada ali funcionava. Tudo que eu havia aprendido nos longos anos de preparo virava pó e desespero. Os meninos eram os mais terríveis do universo. Eu era jovem, ainda tinha 17 anos, poderia até me passar por um deles, por alguns minutos. Usei tudo o que sabia e o que imaginava saber. Meus roteiros e planos de aula, impecavelmente transcritos em fichas, foram um a um se reprovando, evaporando-se em nuvens de decepção. Imaginei que havia me enganado. Ser professor não era nada do que pensara. Ficava muito mais separando brigas e pedindo silêncio do que colocando algo na cabeça e nas páginas dos cadernos de cada um. Minhas aulas foram um pandemônio só. Já estava por desistir e fugir para o fim do mundo quando instintivamente, buscando a última ajuda aos quatro ventos, vi uma grande régua pendurada num prego atrás do pequeno e único armário no canto da sala. Alguns meninos se estapeavam como insetos voadores buscando a luz e um outro havia jogado no lixo o caderno do colega. Muitos atiçavam a confusão. Num ímpeto, como um zorro improvisado sacando da espada, tirei a régua do seu esconderijo e comecei a bater em tudo: na mesa, na parede, nas carteiras, na porta, na cortina, em tudo. A maioria se acomodou num zás trás. Dois garotos ao chão continuavam o round sem perceber a platéia voltando à calma. Cheguei até os dois e mais que depressa desferi dois bons golpes de régua em cada uma das suas pernas. Todos ficaram em silêncio em seus devidos lugares. Senti-me um professor desvairado e não merecedor de qualquer júbilo ou prêmio. Um professorzinho de meia cara era o que eu era. Mas, foi assim que funcionou. Durante alguns bons minutos ficavam quietos copiando, escutando explicações ou fingindo escutá-las. Vinham períodos de esquecimento e a bagunça recomeçava como se nada tivesse acontecido. Só com a régua a todo o vapor conseguia um arremedo de aula. Só com a sua participação especial conseguia subsistir até o final de cada turno com o coração sangrando. Não contava nada disso em casa, não queria decepcionar meus pais. Mas contei, feito prisioneiro, os dias que faltavam para usufruir daquele prêmio suplício. Se não fosse aquela régua em estado de calamidade pública pedagógica talvez tivesse mesmo encerrado a minha carreira logo ali com diploma e tudo. Pude assim compreender bem o que a minha avó dizia com todas as letras da sua vida de fogão de lenha: falar é uma coisa, fazer e que são elas! (Steve Jobs que o diga!) Quando terminei aqueles dias de suplício premiado achei que tinha que seguir outra profissão. Professor não era para qualquer um!

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